A torre da igreja

A torre da igreja - Prefácio

São três da manhã de uma segunda-feira, 11 de setembro de 2023, e fui obrigado a levantar, fazer um café, fazer um cuscuz, e continuar a escrever esta história, não necessariamente nesta ordem.
Esta história nasceu a partir de um poema e pretendia ser apenas um microconto de três parágrafos, formato que adotei para as crônicas que lanço aqui. Mas o texto é parricida, quando nasce mata o pai. Agora ela quer se tornar um romance, quiçá uma série de TV.
Nossa “Torre”, torre de Babel, não pela confusão, mas pelas colaborações com as quais já conto, é também pelas quais vou vir a contar, é a história de uma mulher descobrindo seu passado. Tendo como pano de fundo a história de Itapetim, a história da construção da igreja de São Pedro, epicentro desta história e da cidade. É também a história de figuras reais sendo transformadas em personagens e personagens se tornando reais.
Neste primeiro momento em que vou disponibilizando aqui no Facebook os “capítulos”, quase ao mesmo tempo em que são criados, e em que eles vão sendo revistos e ampliados, se você é de Itapetim ou tem algum vínculo com esta cidade, ou só gosta de ler e escrever, se você tem algo a me contar, se você tem algo a me dizer, terei prazer em ouvi-lo. Me ajude a contar esta história.

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A torre da igreja - parte 01 de 10
A torre da igreja pode ser vista de todos os pontos da pequena cidade. Águida, uma menina, cresceu sob a sobra invisível daquele marco. Mas nunca entrou na nave da igreja de São Pedro, não andou pelo corredor central ladeado de bancos longos, não admirou as estatuas dos santos. Não entre naquela casa, dizia-lhe energicamente sua mãe, a Casa do Senhor é outra! Cresceu indo para a casa do Senhor, levada pela mãe, uma construção quadrada e pequena.
Cresceu espiando de longe aquela Casa, entre curiosa e pecadora. Não perdia uma chance de passar perto, fosse vindo da escola, ou quando ia passear na praça principal em frente, às vezes desviando seu caminho só para isto. As grandes missas que enchiam a cidadezinha de gente, as procissões, os casamentos, tudo observado de longe. Olhando agora da janela do seu apartamento a torre da igreja - aquele lugar já não lhe atrai – ela se pergunta porque a mãe nunca a deixou entrar lá.
O marido pelo mundo para ganhar dinheiro. A mãe falecida. O pai ali perto conversando com os amigos e ela passeia pela praça em frente à igreja com a filha, que todos os parentes dizem ser ela todinha quando era pequena. A filha sobe correndo os degraus da frente da igreja e ela segue atrás, cuidando. Na porta aberta a menina se volta e dá um grande sorriso. Aquele sorriso nas crianças que precede uma corrida e que diz, nem me pega. A filha dispara igreja a dentro pelo corredor central. Ela corre atrás, mas na porta estanca, na sua cabeça a voz da mãe, não entre naquela casa!

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A torre da igreja – parte 02 de 10
Não entre naquela casa! A voz da mãe na cabeça dela.
Sua filha parou no meio do corredor da igreja, se voltou e sorriu um sorriso de espera. Um convite. Com passos lentos ela entrou na igreja. Ela e a filha na nave vazia. As laterais dos bancos decorados com flores e laços para um casamento. Os vitrais das janelas cheios de cores. Toda uma luminosidade e frescor de temperatura.
Não entre naquela casa! A voz da mãe na cabeça dela.
Sua filha parou no meio do corredor da igreja, se voltou e sorriu um sorriso de espera. Um convite. Suas pernas falharam e ela se ajoelhou na entrada da igreja. Sua filha caminhou até o padre que estava pregando no início do corredor. A igreja cheia. Ele segurou a mão da menina e sem deixar de pregar caminhou com ela até a mãe.
Diz o povo da pequena cidade, que nos domingos ela se senta nos primeiros bancos da igreja. Não há provas disto. Nem mesmo há provas do que aconteceu naquele dia, se ela entrou ou não na igreja. Mas há quem diga, que o céu vermelho do entardecer, é o reflexo dos cabelos ruivos dela.

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A torre da igreja – parte 03 de 10 - Acho que não sei quem sou
Ela olha a filha brincando na sala. Pela janela vê a torre da igreja. Na sua cabeça martela a questão de porque sua mãe tanto se empenhou em mantê-la distante daquela igreja. Lembra do sorriso que sua filha deu no meio da nave da igreja. Não tem certeza de nada do que aconteceu depois, nem mesmo se lembra como chegou em casa. Só tem uma certeza, hoje vai mais cedo deixar a filha com o avô, antes de ir para seu plantão noturno, e o pai vai ter que explicar porque sua mãe a queria longe daquela igreja.
Tinha alguma coisa a ver com sua avó, começa o pai, mas eu não sei o que era. Você herdou da sua avó o nome, Águida, e também os cabelos vermelhos. A última lembrança que tenho da sua avó foi quando você foi batizada na igreja de São Pedro. Sua mãe não queria, mas sua avó a obrigou, assim como impôs que seu nome fosse o mesmo dela, Águida. Eu e sua mãe também nos casamos naquela igreja, imposição da sua avó também.
Águida foi e voltou para seu plantão como se não tivesse ido. Doze horas que ela não viu passar. Sua mente pensando em tudo o que seu pai lhe contou. Tanta coisa que não sabia e nem jamais imaginou. No rádio começou a primeira estrofe da canção que dizia, “Sempre precisei de um pouco de atenção. Acho que não sei quem sou, só sei do que não gosto. E destes dias tão estranhos, fica a poeira se escondendo pelos cantos”.

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A torre da igreja – parte 04 de 10 – O beato
Águida costumava correr na ciclovia na entrada da cidade, mas agora no entardecer, dá voltas no quarteirão onde fica a igreja. Corre até ficar totalmente esgotada e no final se senta nos degraus da escadaria da igreja. Tantas perguntas sobre seu passado e ela não sabe a quem perguntar, nem por onde começar. O único parente do lado da sua mãe era sua avó, que não conheceu e de quem sua mãe nunca falou nada.
Águida conhece o entardecer da torre da igreja visto da janela do seu apartamento, as vezes até tira fotos com seu celular e posta no Facebook com algum elogio a beleza. Mas ali nos degraus, ela faz parte do cenário que a vida toda apreciou de longe. É um sentimento estranho fazer parte de algo que se conhece e ao mesmo tempo se desconhece. Como andar por uma rua onde foi filmada uma cena de um filme assistido. Aquele azul do céu no final do dia aumenta a tristeza que sempre foi sua companheira.
Um barulho as suas costas, que parece um gemido, arranca Águida de seus devaneios. Na porta da igreja há uma pessoa sentada e envolta num cobertor. De onde está, Águida vê algo vermelho na cabeça da pessoa e acha que ela está ferida. Se aproxima e reconhece o beato que perambula pela cidade. Seu instinto pensa logo em tratar o possível ferimento.
- Moço, o senhor está ferido? Deixe eu ver, eu sou enfermeira.
O mendigo fica de pé num salto e se dirige a ela – Você é uma das nossas.
Ela institivamente tenta descobrir a cabeça dele, que o cobertor cobre como se fosse uma túnica. O cobertor cai e ela percebe que ele não está ferido, o vermelho que ela de longe imaginou ser sangue, são os cabelos ruivos do mendigo. Ele foge correndo, deixando o cobertor para trás, enquanto repete – Você é uma das nossas.

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A torre da igreja – parte 05 de 10 – Vovózinha
O homem com quem Águida se assustou na porta da igreja é figura conhecida em Itapetim. Chamam a ele de Beato. Como Francisco de Assis, ele que também se chama Francisco, abriu mão de tudo e construiu até uma capela lá para os lados do Sitio Clarinha. O povo diz que ficou assim depois de bater na própria mãe. O povo diz também que ele fez isso porque estava bêbado. Desde então perambula descalço pela cidade.
A capela do Beato é uma construção pequena, mal cabe uma pessoa dentro. Ele está sentado na porta. Tem um cobertor sob os ombros, a cabeça descoberta revela dreads, mechas rasta, grisalhos, mas não são ruivos. Águida se aproxima de olhos fixos nos cabelos do Beato.
- Eu queria falar como o senhor – começa Águida acanhada – Porque lá na igreja o senhor falou que eu sou uma de vocês?
O Beato levanta-se, a olha de cima a baixo, lhes dá as costas, entra no mato e some.
- Não ligue não, ele é assim mesmo – diz uma voz nas costas de Águida. Ela se volta e vê uma senhorinha de cabelos cor de algodão, braços cruzados e apoiados no cabo da enxada.
A senhorinha coloca a enxada no ombro e desce pelo caminho por onde Águida chegou.
- Vamos minha filha, daqui a pouco escure.
Águida a segue - Ele não tinha os cabelos vermelhos?
- Quem?
- O Beato.
- Não.
- Mas eu vi...
- Ande que já vai escurecer. Não é bom para uma menina como você andar por estes caminhos sozinha. Você veio atrás de respostas, não foi? Mas respostas não nos ajudam muito não. É preciso saber quem somos, isto nos ajuda. A mãe da sua mãe era uma grande devota, ajudou a construir a igreja de São Pedro, aquela lá que te atrai. Fazia grinaldas para as noivas e madrinhas dos casamentos, flores de pano com goma. A gente vem de uma linhagem. Sua avó Guida, eu, sua mãe, você, sua filha. Não há nada de especial em nós não. A não ser o fato de sermos mulheres, mulheres com uma coisa a mais para eles usarem para nos enxotarem.
- Eu vi o Beato na porta da igreja, e ele tinha os cabelos ruivos.
– Você tem os cabelos vermelhos, eu já tive, mas o Beato, nunca teve cabelos vermelhos não.
As duas chegam numa bifurcação do caminho.
- Aqui nos separamos. Eu moro logo ali. Se apresse porque já vai escurecer - Você alguma vez viu os cabelos da sua mãe?
- Minha mãe usava peruca. Ela não tinha cabelos por causa da doença.
A velha sorrir docemente – Foi o que eu imaginei, você nunca viu os cabelos da sua mãe.
Águida fica ali, parada, na encruzilhada. A velha se afasta mas volta e grita – Ande minha filha, ande antes que escureça.

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A torre da igreja – parte 06 de 10 – Mamãe

Os cabelos do Beato não eram ruivos. E se não era o Beato, quem foi que ela viu? Águida não sabia o que lhe acontecia às portas daquela igreja. Seu pai, ou escondia alguma coisa, ou era só aquela coisa de homem mesmo, que não presta atenção a nada do que acontece a sua volta. Tudo isto se passava na cabeça dela enquanto faxinava a casa do pai, como fazia semanalmente. Sentou na cama dos pais, prostrada, cansada, mas não pelo trabalho de limpeza. A sua frente, a mala antiga, daquelas duras, com proteção de metal nos cantos, que vivia embaixo da cama dos pais.
Sob a cama, a mala aberta, fotos que nunca tinha visto; uma grinalda; flores de tecido e goma; uma escova, grampos e fitas de cabelo; um espelho de mão. Um tufo grande de cabelos, longos e ruivos, um verdadeiro rabo de cavalo. No colo, entre suas mãos, a peruca de cabelos pretos da mãe. “Você alguma vez viu os cabelos da sua mãe?”. Águida chorava, mais do que chorou na morte da mãe, muito mais.
Depois de limpar a casa, Águida almoça com o pai e a filha que tinham ido dar uma volta na praça.
- Pai, mamãe não foi enterrada com a peruca dela não?
- Não.
- Porque?
- Um pedido dela.
- Quem foi que arrumou a mamãe e guardou as coisas dela, a peruca dela?
- Teresa.
- Que Teresa?
- Sua avó.
A avó paterna era uma pessoa afastada da casa do pai. Quer dizer, seu pai é que era afastado da mãe. Não falava dela, não a visitava, mas era verdade, ela esteve no velório da nora. Cuidou de tudo.

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A torre da igreja – parte 07 de 10 – A mulher do padre
- Qual era o mistério que mamãe escondia?
Embora Águida esteja ao lado de Andréa, sua colega de trabalho e também enfermeira, não se trata de uma pergunta dirigida a amiga.
- Acho que você é filha do padre – diz Andréa.
- Não...
- Então você não é filha do seu pai.
- Também não...
- Como é que você pode saber? – Andréa continua - Você não sabe nada sobre o passado da sua mãe. Nem doente sua mãe era. E a senhorinha que você encontrou na capela, como é que ela sabia sobre os cabelos da sua mãe?
- Sei lá.
- Ela é sua avó paterna.
- Não, eu sei quem é a mãe do meu pai.
- Então a velhinha só pode ser sua avó materna.
- Não, minha avó materna está morta. A velhinha fez uma lista de mulheres, disse que vovó Guida, ela mesma, eu, minha filha, tínhamos todas os cabelos vermelhos.
- Ainda acho que essa velhinha é sua avó.
- Mas então porque ela não me disse que era minha avó?
- Mal de família, sua mãe nunca lhe contou nada. Você, não me conta nada.
- Não tenho nada para lhe contar.
- Nem mesmo sobre o motorista da ambulância?
- Eu sou casada.
- Sim, e onde está o seu marido?
Águida não responde.
- Seu pai falou que sua avó por parte de mãe era ruiva. Você é ruiva, sua filha é ruiva - Andréa conclui - Sua mãe era ruiva, claro! Agora, por que sua mãe, ao invés de exibir seu cabelão vermelho, preferia uma peruca preta, não dá nem para imaginar.
- Eu vou enlouquecer com todo este mistério sobre minha mãe.
- Cadê a foto dos cabelos da sua mãe?
Águida entrega o celular para a Andreá, ela olha, amplia a foto.
- Se eu tivesse um cabelão desses, vermelhos, mas eu não usava uma peruca nem pelo “carvalho”! As mulheres dessa tua família são tudo esquisita. Você, você vive escondendo esses cabelos ruivos lindos. Já até pintou de preto, meu Deus. Bando de mulheres esquisitas, vocês.
Incisiva, Águida retruca - Tenho certeza que sou filha do meu pai. E sabe porquê? Por causa dos nossos tipos sanguíneos.

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A torre da igreja – parte 08 de 10 – A mãe do meu pai

A casa da avó paterna de Águida é uma das melhores de Itapetim. É o ramo rico da família. Estranhamente quem abriu a porta foi a própria avó. Em silencio foram até a sala e se sentaram. Águida acanhada, Teresa em silêncio, segurando um caderno.
- Perdi meu filho – começa Teresa - Não vi você crescer. Eu ainda tenho – faz uma pausa antes da próxima palavra – Eu ainda tenho raiva da sua mãe. Você quer água?
- Não senhora.
- Toda geração da minha família teve um padre, ou freira, seu pai era para ser padre – retoma Teresa - A cada vez que eu levava meu único filho para as reuniões que antecediam o seminário, eu era como Abraão, levando o próprio filho para imolar. Segurava e apertava o cabo da faca, enquanto orava para que Deus não o deixasse ir para longe de mim. Meu filho era um bom menino e desde novo soube que era preciso manter a tradição da família – com alegria Teresa lembra - O tio dele, meu irmão, era o padre de Itapetim naquela época – a alegria some do rosto de Teresa e ela continua - Eu orei tanto a Deus que meu único filho não se tornasse seu sacerdote. E Ele me atendeu, mas eu não entendi. E quando achei que ia perder meu filho, não para Deus, mas para outra mulher, eu mesma resolvi as coisas. Eu preciso de um copo de água, venha comigo até a cozinha.
Teresa pega uma jarra de água na geladeira e a põe na mesa da cozinha. Ali, Águida se certifica que a avó dispensou todos os empregados para recebe-la. Já sentadas, Teresa serve dois copos pela metade, coloca um na frente da neta e dá um gole no seu.
- Eu não consigo lhe contar tudo o que aconteceu. Não consigo lhe pedir perdão pelo que fiz. Vou lhe entregar este caderno, é de sua mãe, tirei das coisas dela.
Teresa empurra o caderno para a frente de Águida.
- Aí está tudo que você busca saber. E é tudo verdade, o que sua mãe conta aí.
Águida olha o caderno surrado, sem ter coragem de pegá-lo.
- Eu preciso lhe pedir uma coisa – diz Teresa humildemente – volte aqui algum dia, volte aqui com meu filho, me dê esta última alegria em vida.
Pela janela a torre da igreja espia Águida, com o diário da mãe no colo. Sua mãe e seu pai, adolescentes, destinados a vida religiosa, a serem padre e freira. Foi assim que se conheceram.

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A torre da igreja – parte 09 de 10 – Um casal pego pra cristo

Reunidos na nave da igreja, meninos nos bancos da direita, meninas nos bancos da esquerda, são como um exército, com um sargento a frente de cada companhia. A frente das meninas uma freira, a frente dos meninos, um padre. A primeira coisa que acontece é a chamada, tudo observado pelo pároco, o padre João Maria José Francisco Xavier.
- José Maria? - Indaga o padre.
- Presente, senhor! – responde José Maria.
Maria José, imediatamente procurou aquele que tinha a versão masculina do seu nome. Só conseguiu ver seu perfil.
- Maria José? – Chama a freira.
- Presente, senhora! – responde Maria José.
José Maria se voltou e encontrou os olhos de Maria José cravados nele. Para eles, esta foi a primeira coisa que aconteceu, logo no primeiro dia. Dois nomes, iguais nos dois, em ordem inversa. Nomes dos que foram a mãe e o pai de Cristo na terra.
José Maria estava ali para que se cumprisse a tradição em sua família de que a cada geração tinham um padre ou freira. Assim como também costuma acontecer nas famílias de advogados e condutores de carroça.
- Mãe, eu não vou mais ser padre – disse José Maria para sua mãe. Foi dito sem nenhuma prévia e tão diretamente, que Teresa não teve reação nenhuma.
Maria José estava ali guiada pela fé de sua mãe, para que não se cumprisse na família a tradição da morte por fome. Maria voltou para casa alimentada, tendo feito três refeições num único dia. Feliz, sem entender o porquê. Feliz por uma série de trocas de olhares que aconteceram durante aquele primeiro dia de orientações primeiras, sobre as responsabilidades e renúncias quando se decide pela vida religiosa.
Maria José não disse nada a sua mãe. Mas Guida, olhava a filha tão feliz, que as dúvidas que tinha de estar conduzindo a filha para um convento se acabaram. Agradeceu a Deus que sua filha estivesse tão feliz já na primeira reunião de seminaristas. Não teria uma neta, todas as mulheres da sua família só tinham meninas, mas para que perpetuar dor e sofrimento?
A semana de reuniões na igreja transcorria. Teresa, irmã do pároco, era uma autoridade na igreja. Guida, envolvida com a decoração da igreja em dias festivos e quem também fazia as grinaldas para todas as noivas que ali casavam e suas madrinhas, também se sentia à vontade naquela casa. Estava ali há muito tempo, Guida ajudou sua mãe a carregar pedras para a construção daquela igreja, Teresa também, estava ali há muito tempo. Guida agradecida por sua filha estar feliz em ser freira. Teresa, querendo descobrir o motivo que fez seu filho dizer que não queria mais ser padre logo no primeiro dia. E descobriu. Teresa e Guida, lado a lado, na porta da igreja. José Maria e Maria José caminham lado a lado pelo corredor central da igreja, rumo as mães, sorrisos tolos nas caras.

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A torre da igreja – parte 10 de 10 – Seu Zezé e Dona Zezé

No altar e no centro, a estátua de São Pedro, padroeiro da igreja, a direita a estátua da Virgem Maria, a esquerda, a de São José. As chaves dos Céus e o porteiro, ladeados pelos pais terrenos do Filho de Deus. Nas laterais do altar, no lado de Nossa Senhora, as meninas, junto com a freira, no lado de São José, os meninos, junto com o padre. A igreja cheia em dia de saber quais filhos da terra iriam estudar para serem padres e freiras. O pároco, o padre João Maria José, no final, toma a palavra.
- Todos vocês – se dirigindo aos futuros seminaristas – serão encaminhados para o seminário. O Senhor precisa de todos vocês. Mas, se há entre vocês, alguém que depois desta semana que tivemos, onde foi apresentado tudo aquilo a que vocês têm que renunciar, que tomou consciência de que a porta estreita que se abre para vocês não é o que querem, que fale agora.
Não se ouve uma voz, só um arrastar de sapatos. Um pigarro, uma tosse, uma criança que chora enquanto a mãe tenta acalmá-la.
- Tio – chama José Maria enquanto se levanta, mas se corrige rápido – Padre João Maria, eu não posso ser padre.
Murmúrios entre os presentes. A criança ainda chora.
- Você está certo disso, meu filho?
- Sim, sim senhor.
- Há mais alguém entre vocês que queira desistir?
Os olhos de José Maria, cravados em Maria José, tentam lhe passar coragem. Teresa ficou de pé a beira dos degraus do altar. Maria José se levanta. Guida, até então numa das laterais, se aproxima dos degraus do altar.
- Eu também não posso ser freira – diz timidamente Maria José.
José Maria vai ao encontro de Maria José. Já não são murmúrios o que se ouve, mas conversas várias. José Maria e Maria José dão as mãos.
- Irmãos? – o pároco se dirige a plateia – Irmãos? – o silêncio vai se reestabelecendo e a criança não chora mais – Meus filhos – o padre se dirige aos casal e faz um gesto para que se aproximem – É preciso tanto ter coragem para aceitar o serviço do Senhor, quanto para saber que não poderemos com a responsabilidade de servir ao Senhor. Ide em paz e que o Senhor voz acompanhe.
- Ide em paz?!? – Teresa intercepta o casal e se põe entre os dois – Se você sua... Se você acha que vai desvirtuar o meu menino... Você, você, você...
Teresa arranca o lenço que cobre a cabeça de Maria José. Os longos cabelos ruivos de Maria José ficam a mostra. José Maria tenta afastar a mãe. Guida tenta proteger a filha e Teresa arranca o lenço que ela tem na cabeça também. Os longos cabelos ruivos de Guida ficam a mostra também.
- Vejam, vejam, vejam – brada Teresa se dirigindo aos presentes enquanto aponta para as duas – Duas bruxas, com os cabelos da cor do fogo do inferno.
Guida afasta e ampara a filha, as duas saem da igreja. Teresa contém o filho que quer ir atrás das duas.
Na sala do pároco, Teresa, o filho e o padre.
- Teresa – começa o padre – Não precisávamos de todo aquele escândalo, não é?
- E você acha que eu ia deixar aquelazinha desvirtuar o meu filho? Eu lhe avisei e pedi que tirasse ela das reuniões.
- Você não tinha nenhuma prova contra ela.
- Não tinha, olha aí, o bonitinho aqui disse diante de toda a sociedade que não pode ser padre.
- Mas você mesma disse que se não fosse a tradição da família não queria que ele fosse padre.
- Eu não disse nada – levanta-se – Quer saber, os padres deviam poder casar, para ter uma mulher para botar ordem na igreja – para José Maria – Vamos, que eu vou te levar até Recife, nem que seja amarrado, e lá, você vai ser padre! Ou eu não me chamo Teresa.
Naquela mesma noite, José Maria bateu na janela do quarto de Maria José, e ainda de madrugada fugiram para se casarem em São José do Egito, município vizinho. José e Maria, fugindo para o Egito. Pela manhã Teresa invadiu a casa de Guida, mas não encontrou o filho. E Guida descobriu que a filha tinha fugido. Os dois voltaram para a casa de Guida casados e naquela noite consumaram o casamento. No dia seguinte Teresa invadiu de novo a casa de Guida e o quarto de Maria José, que agora era o quarto do casal. Teresa levou o filho e disse que eles só iriam viver juntos sob as bênçãos do Senhor, depois de casarem na igreja.
Foi um casamento e uma festa de casamento constrangida. Teresa impediu que Guida trabalhasse na decoração da igreja e também que fizesse a grinalda da própria filha e das madrinhas de casamento. Foi uma festa grande, do tamanho da vontade de Teresa de apagar o escândalo na igreja e do filho ter quebrado a tradição da família.
José Maria e Maria José depois de casados foram morar na casa de Teresa. A filha dos dois nasceu e foi batizada com o nome de Águida, a única coisa que Maria José conseguiu impor, a escolha do nome da filha, homenageando a mãe. A relação entre sogra e nora era de tolerância mútua, mas não poder escolher o nome da neta fez com que Teresa quebrasse esse pacto. O clima entre as duas, cada dia mais insuportável. Teresa odiava ver Maria José desfilando pela sua casa com aqueles longos cabelos “da cor do fogo do inferno”. E ela deu um jeito naquilo.
José Maria chegou em casa e não encontrou Maria José.
- Mãe, onde está a Zezé?
- Na casa da mãe dela, claro, como sempre.
- Mas é tarde, ela não costuma ficar lá até tão tarde.
- Acho que ela vai ficar.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, eu só resolvi um pequeno probleminha.
- Que probleminha, mamãe?
- Vá perguntar a sua mulherzinha.
Ao chegar na casa de Guida, José Maria encontrou a sogra na sala com a neta no colo.
- Sua esposa está no quarto dela – disse Guida falando baixinho.
José Maria assentiu e entrou no quarto. Na cama, enrolada em um cobertor, Maria José, em posição fetal, soluçava. José se aproximou, sentou na borda da cama.
- O que aconteceu meu amor, porque você está chorando?
Os soluços dela se transformaram em choro. José a puxou para si, a fez se sentar a seu lado e descobriu sua cabeça. Tomou um susto. O cabelo de Maria tinha sido cortado, seu rabo de cavalo tinha sido arrancado e ela segurava no colo o tufo de cabelo longo e ruivo. Há quem diga que Teresa deu um sonífero para conseguir cortar o rabo de cavalo de Maria José.
José Maria mudou-se para a casa de Guida e rompeu definitivamente com a mãe. Isto lhe trouxe dificuldades financeiras. Mas ali, na casa simples da sogra, eles viveram felizes e viram Águida crescer e se tornam o seu Zezé e a dona Zezé. E os conhecidos brincavam com isso, chegavam na porta e gritavam – Oh Zezé! - Se vinha o José, o visitante dizia que queria falar com a Maria, se vinha a Maria, dizia que queria falar com o José. E a alegria começava já na calçada.
Águida, sua filha Lory e José Maria no seu passeio costumeiro na praça. O pai conversa com os amigos e Águida pastoreia a filha. Lory sobe os degraus da igreja e Águida atrás. Na porta da igreja Lory para.
- Quer entrar filha?
- Não precisamos mamãe.
É, não precisamos, pensa Águida, entendendo agora porque a mãe sempre a quis longe dali. Local de más lembranças para sua mãe. Mas também o local onde ela encontrou o seu primeiro e único amor. Nada é totalmente bom ou mal, em tudo há os dois lados. Águida e a filha voltam a praça. Lory dá voltas em torno da mãe. Águida solta os longos e ruivos cabelos como nunca fez antes. Segura as duas mãos da filha e giram numa ciranda.
FIM.
Rotsen Alves Pereira
Setembro a Novembro de 2023

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