Ontem minha mãe morreu
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.
Recebi um telegrama do asilo:
“Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos.”
Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
O estrangeiro – Albert Camus
Ontem minha mãe morreu.
Hoje foi enterrada num desses cemitérios particulares e modernos, onde não há
construções de mausoléus, só lapides deitadas no imenso gramado.
“O maior cemitério da
América Latina. Um milhão e duzentos mil metros quadrados de bosques, colinas,
flores e muito verde totalmente urbanizado.
Com infraestrutura de serviços vinte e quatro horas por dia. A quinze
minutos da Barra (da Tijuca). Este é o lugar mais perto do paraíso”.
O texto acima está no
site do cemitério. Serviços 24 horas por dia, hum... Se fosse possível aos
inquilinos aproveitar tudo que o local oferece, comprar umas cervejinhas na
cafeteria, levar 15 minutinhos para dar um pulinho no Barra Shopping, eu
concordaria em ir logo para lá.
Este cemitério fica
próximo da casa de minha mãe. Lugar de árvores frutíferas. Um de meus irmãos
mesmo, relatou durante o velório para minha esposa que com amigos roubava
frutas ali. No passado, quando eu era solteiro, eu só vinha na casa de minha
mãe uma vez por semana, no dia da minha folga, não deu para visitar os pomares
e quintais vizinhos, furtar frutas, não deu nem para vir para o velório e funeral
de minha mãe. Estava em Pernambuco, e quando soube da sua morte, não cabia mais
me despencar às pressas para ver um corpo morto, já que não tinha me mexido antes
para ver um corpo vivo.
Embora possa parecer
muito atrativo o modelo de cemitérios parques, cemitérios jardins, não tenho
interesse, depois de morto, em ir para nenhum desses novos modelos de última
morada. Sou doador de órgãos, se quando morrer algum órgão puder ser
aproveitado, que assim seja, senão, que meu corpo seja doado para alguma
faculdade de medicina, para que os alunos tenham onde praticar suas incisões.
Então, serei só um corpo, como acho que hoje sou.
11 de novembro de 2020
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