Rua Sem Saída
Puto com a lentidão do
trânsito, Jaime virou na primeira à direita. Sorriu e acelerou espertamente na
rua vazia de carros. Mudou o cambio para automático e se acomodou melhor no
banco do BMW modelo ZR3. Aumentou o
volume do rádio sem precisar tirar as mãos do volante, verificou o nível do
óleo e só não sentiu a tração das quatro rodas se ajustarem automaticamente
porque a curva não era acentuada. Mas quando ia aproveitar a potência do motor,
que ia de zero à cem em segundos, e a única coisa que ainda não tinha testado,
teve que fazer uso dos freios ABS, que funcionaram com precisão - como tudo o
mais dito no comercial de TV -,
impedindo que o pará-choque se arranhasse no carrinho enferrujado de bebê
tombado no final da rua.
O
emboço caído em vários pontos deixava ver os tijolos pequenos e sem furos do
paredão de um galpão que fechava a rua. Caixotes de madeira, sacos de
supermercados cheios de lixo e amarrados na boca, formavam bolas disformes
distribuídas desordenadamente entre o mato alto. Mais raiva teve do que quando
se arrastava no engarrafamento. Suas mãos se crisparam no volante, o que fez
com que o som do rádio fosse aumentando até o máximo, fazendo tudo vibrar.
Um
grupo de meninos cruzou na frente do carro e pulou o muro lateral ao paredão.
Porque o som do rádio impedia que ouvisse qualquer outra coisa, embora não o
percebesse, as crianças pareceram fazer parte de um filme mudo. Só quando o
último deles, o menor, com muito esforço e certa engenhosidade, pulou também o
muro, Jaime desligou o rádio.
Jogou o carrinho de bebê para longe. Enquanto
batia uma palma da mão na outra tirando a ferrugem avaliou o espaço para
manobrar. Voltou ao carro e sem entrar pegou no
painel uma caixa de lenços de papel. Limpou melhor as mãos, deixando os
papéis caírem aos seus pés, abriu a porta e então viu a casa. Dois andares, um
lance de escadas na entrada, pequenas grades junto a calçada, respiradouros do
porão. Aproximou-se e tentou ver o interior, como não conseguiu, desistiu.
Girou e observou a rua, outras três ou quatro casas iguais, separadas por
paredões que eram fundos de prédios e edifícios.
Na
calçada molhada, galhos e folhas eram sinais da chuva de ontem. A temperatura
condicionada pela sombra predominante e a certeza do sol na esquina induziam a
uma vontade de aspirar aquele ar como se
ele fosse uma novidade. O cheiro do cimento molhado, das folhas, de tudo
molhado trazia uma saudade não sabia de quê, numa manhã igual aquela. Jaime
sentou nos degraus e automaticamente afrouxou a gravata, já num esforço
inconsciente de tentar se lembrar.
Aquele trecho da rua não tinha movimento de pessoas, e tanto a
casa que tentara ver, como as outras não pareciam ter moradores. Talvez fizesse
uma hora que Jaime estava sentado sem pensar em nada, como se isso fosse
possível, quando da casa em frete saiu uma menina num uniforme de normalista,
Jaime não viu seu rosto, mas quando a viu se afastando ficou de pé num salto.
-
Nora!
- o nome saiu sem força de sua boca.
Jaime atravessou a rua correndo e
seguiu a adolescente. Sapatos de
borracha pretos, meias brancas e pernas morenas; saia azul marinho longa, que
lhe enfeiava; blusa branca de mangas longas e masculina e o desenho claro do
soutien. O rabo de cavalo deixando a nuca exposta. Jaime administrou o passo por algum tempo, tendo a
sensação de já ter feito aquilo mesmo antes. Depois chama mais uma vez sem a
menor convicção.
-
Nora?!
Repete
mais alto – Nora!?
Ela se volta: - Ah? –
indaga enquanto tira do ouvido um dos fones do walkman.
- Seu nome é... Não, nada, desculpa.
Ela recoloca o fone, dá uma olhada em Jaime e no carro ao fundo,
sorri e se afasta.
E se ela dissesse que Nora era realmente seu nome? Isso não
mudaria nada. Apenas pioraria aquela sensação que aumentava. Mas não poderia
ser. Ela não era uma estudante, não era Nora, seja lá quem fosse Nora. Era só
uma demonstradora de produtos ou recepcionista em algum shopping, e que o
uniforme lembrava o de uma colegial.
“Você sabe o que é uma pérola e uma opala,
você sabe o que é? Minha alma, quando você veio a mim naquelas suaves manhãs de
verão era bela mas com a beleza pálida e sem paixão de uma pérola. Teu amor me
trespassou e agora sinto que minha alma é algo como a opala, isto é, cheia de
matizes e cores estranhas, incertas de claridades quentes e sombras ligeiras e
de música despedaçada”.
Não tão inteiro e muito menos ordenado assim, mas parte, e a
outra adivinhada, Jaime ouviu esta poesia dentro da sua cabeça e logo depois um
coro de moleques gritando:
- Jaime está apaixonado! Jaime está apaixonado!
Ele ri encabulado como talvez tenha feito
um dia.
- Que merda de lembranças são estas? - resmunga
enquanto volta para o carro.
Quando chega na esquina a estudante se volta e sorri para as
costas de Jaime. Some na curva no mesmo momento em que Jaime se volta querendo
vê-la mais uma vez. Surge neste momento na esquina uma velha que prende a atenção de Jaime.
A velha se aproxima, arrasta um carrinho de feira e usa um lenço
preso a cabeça. Há muito tempo as mulheres não usam lenço. Ela para em frente a
casa que Jaime tentou olhar.
- Meu filho, você pode ajudar essa velha senhora?
Jaime leva o carrinho de feira até o primeiro andar. Acha
estranhamente familiar a sala. Caminha até a janela e lá de cima observa a rua.
O bando de meninos passa fazendo grande bagunça, só que agora o menor corre na
frente e parece ser perseguido pelos outros.
- Só as crianças me impedem de acreditar que aqui ainda não
estou no mundo dos mortos.
Jaime se volta e força um sorriso. Fixa-se no carrinho e
pergunta sem saber porque.
- Na feira ainda vendem cabeça de porco?
- Não, há muito tempo...
Jaime força novo sorriso e desce a escada e a velha arrasta o
carrinho para a cozinha.
De novo sem pensar, como se isso fosse possível, ainda mas duas
vezes no mesmo dia, ficou plantado na calçada. Olhava um velho negro que varria
inutilmente um grande pátio do que podia
ter sido uma escola. Ouviu a campainha avisando o término das aulas, a algazarra
dos alunos. Girou a cabeça para um lado e outro temendo ser atropelado pelo
bando de meninos. Mas estava tudo deserto, a não ser por ele, o negro do outro
lado da rua e também pelo bêbado que alisava seu carro com um pano imundo.
Plantado ali na calçada como as outras árvores, não reparou no
avanço do sol até que sua sombra fosse nenhuma. Modelo num comercial de
desodorante com proteção total contra a transpiração. A barba bem feita, o
cabelo calculadamente desarrumado, a camisa branca fora da calça, marcada pelo
aperto do cinto. Era bonito também.
No retorno a via principal, uma sucessão de outras lembranças o
atingem e ele dirige devagar. O tempo que morou com os tios. Os amigos da
vizinhança. A irmã de um amigo, possivelmente Nora. O frio do bairro onde
nevava. Acompanhar a tia até a feira suja onde se vendiam cabeças de porco. Os
carros atrás buzinam reclamando do seu ritmo.
- Mas que merda! - diz
com força para ver se espanta aquilo.
Não tinha morado com tios, nem em lugar com neve. Aquela
infância não era sua. Ignorando o argumento elas continuavam vindo. A vez em
que tinha ido de trem para uma festa junina só para comprar um presente para
Nora.
- Nunca andei de trem – gemeu.
Tinha ido a festa só para
comprar um presente para Nora, porque ela disse que gostaria muito de ir
mais não poderia.
- É você vai? – perguntou Nora.
- Vou – disse Jaime inseguro e ela riu.
-
E trago um presente pra você! – emendou convicto diante do sorriso de Nora.
- Bem bonito?! – perguntou ela.
- Hum hum – confirmou ele e os dois riram.
Esta
lembrança o alegrou e voltou contente a lentidão da avenida principal,
entorpecido de lembranças.
Coisa boa e engarrafamento, tudo se move devagar, os sons são
muitos e distantes. As pessoas são como um cardume num aquário as avessas.
Passam rápido e por todos os lugares.
Não tinha conseguido comprar o presente para Nora. Não lembrava
o porque. E isto, mas do que não saber se realmente aquela infância era sua, o
fazia sentir-se enganado por sonhos.
O
trânsito se arrastava lento nos dois sentidos. Angustiado pensou que mais uma
vez não tinha conseguido testar a aceleração do carro.
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