(Maria) Das Dores


Ele chegou para pegar um prato de comida. Disse que comia pouco, mas que podíamos cobrar o preço. Minha mulher lhe fez o prato, acompanhado de um copo desses refrescos em pó que vem em saquinhos e rendem um litro depois de prontos. Como sobremesa ela lhe serviu também um pedaço do bolo que tinha feito ontem para comemorar meus cinquenta anos. Não servimos sobremesa, mas ele comeu tão pouco, que acho que minha esposa ficou envergonhada de cobrar por tão pouca comida que lhe ofereceu o bolo.

Depois de comer, e ele comia pouco mesmo, me falou das dores que o habitavam. E era eu escutando sobre suas dores e pensando que as dores que o habitavam moravam eram em mim. E no final, as dores não eram nem minhas, nem dele. Talvez por ser assim, doíam ainda mais do que se fossem nossas.

Destino, coincidência, acaso, Deus... eu parei de procurar um adjetivo para essas coisas que sempre me acontecem. Dias atrás minha esposa me apresentou a uma lista das dores que nesses quase doze anos de casamento lhe causei, e olha que ela nem listou todas.

É àqueles que nos amam que impingimos o maior número das dores que distribuímos pelo mundo.

Por onde passei causei algum tipo de dor. Na entrada ou na saída. Deliberadamente ou inconsequentemente. Embriaguei-me e dei tiros em lugar fechado. Furtei e falsifiquei. Assinei por outrem como se eles fosse, comecei quando assinei pela minha mãe para poder tirar minha identidade. Menti, ludibriei, odiei, tive raiva, estuprei. Fumei, nunca cheirei. Tomei o chá. Nunca matei e nem bati em ninguém, nunca. Nem mesmo quando era moleque brigava. É verdade que cheguei a tentar matar um amante asfixiado, em praça pública na calada da noite.  Pratiquei o catolicismo, a pornografia, o evangelho, o sadomasoquismo, o kardecismo, e quando moleque fui levado por minha mãe ao terreiro para alinhar o espinhaço. Prostituí-me e prostituo-me.


A minha mãe, irmãs e irmãos, sobrinhas, filha e esposa, amigos e tantas outras pessoas com quem cruzei por esse mundo de meu Deus distribui um punhado de dor. Ainda assim sou tido em alta estima por todos, irmãos, irmãs, amigos e todos mais. Não há quem não tenha para mim um elogio. Velhos, crianças e bichos gostam de mim.

Ele não tinha pressa e eu esperando que começasse a comer o bolo, quando ele me disse uma daquelas coisas que quanto a gente escuta, sabe que está diante de uma verdade absoluta. Me disse ele que, o milagre está na carne, mas a cura está na alma. E eu fiquei me acostumando com esse pensamento, com essa ideia, com essa máxima.

A gente fica esperando milagres e se esquece de procurar a cura. Esquece de se curar um pouco a cada dia, até um dia estarmos sãos.     

Enquanto comia o bolo ele me disse que sentir dor é estar vivo. Dias atrás passei uma semana ou mais sendo lembrando que estou vivo. Uma inflamação em um músculo do pescoço, que só cessou com o uso de injeções, me impôs dores que dormiam e acordavam comigo. Tão boas as dores físicas.



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